O primeiro Natal sozinho. Na memória, as festas de infância
com toda a família reunida. Peru. Árvore com luzes e bolas coloridas. O tio
fanfarrão fantasiado de Papai Noel, provavelmente bebadaço. A primaiada
correndo de um lado ao outro, e um que sempre acabava na reta da varinha de
marmelo da vó.
Mas hoje é Natal. O nascimento de Jesus. Alguém dizia, mas
nem isto servia para poupar das lambadas. Há quanto tempo isto? Dez, quinze
anos atrás.
O primeiro Natal sozinho. Papai já havia morrido há muito.
Mamãe, ano passado. Já morava fora e não fui ao velório. Minha irmã nunca me
perdoou. Até hoje não nos falamos.
O primeiro Natal sozinho. Está nevando lá fora de novo.
Dizem que este inverno será particularmente rigoroso, com mais nevascas
previstas para janeiro.
Cidade de merda. Murmuro em pensamentos vendo os flocos
brancos deslizando lentamente até a rua lá embaixo.
Pensei em voltar este ano, mas para quê? Os que não estavam
mortos, já haviam morrido por dentro. Os primos todos espalhados pelo país,
cada um em seus cantos, com suas respectivas famílias. Seria um Natal tão
triste lá quanto aqui.
Natal branco, como nos filmes, mas ninguém conta sobre a
tristeza que dá ao mergulhar na escuridão e no frio. Natal branco é morte, e
muitos se suicidam nas vésperas do Natal.
Nasce o menino-Jesus, outros cortam os pulsos no chuveiro.
Não vou ficar aqui pensando em tais coisas. Hoje não. Porque
não.
Visto meu casaco e saio porta afora, correndo escada abaixo
e encarando o vento gélido e atolando os pés em trinta centímetros de neve.
Há um bar a três quadras de casa. É pra lá que vou. Uma meia
dúzia de gatos pingados se perde na meia luz, alguns sozinhos nas mesas, outros
sozinhos no balcão. O que nos une é a solidão.
Peço uma Lager e o bartender logo enche o caneco. Dou um
gole e, quando pouso a bebida no balcão, meu olhar encontra os dela do outro
lado.
Uma alemã típica, meio corpulenta, loura e rugas ao redor
dos olhos azuis. Tem uns vinte anos a mais do que eu, calculo. Não faz bem o
meu tipo, mas, mesmo assim, sorrio pra ela.
Sem hesitar, ela se levanta e senta-se ao meu lado, mas, por
vários minutos, não diz nada. Nem eu, sem reação, um pouco intimidado,
confesso.
Este será o meu último Natal. Ela diz, por fim. O último.
Permanecemos quietos, eu com o “Warum?” entalado nas
entranhas.
Me deram mais três meses apenas. Depois, acabou. Ela disse.
Era tão nova. Fitei-a com cuidado agora, quase
descaradamente.
Sei o que você está pensando… Câncer. E ela deslizou a mão
por sobre o seio. Assim como a minha mãe. Ela disse.
Sinto muito. Respondi. Sinto muito…
Obrigada. Ela disse, repousando a mão dela sobre a minha.
Estremeci. Ela não fazia o meu tipo, e reconheço que tive um
pouco de medo, como se a morte estivesse pairando sobre nós dois naquele
momento.
Quer vir para a minha casa? Perguntei, num impulso, sem nem
bem entender por quê. Tinha pena, sem dúvida alguma, mas não havia sido apenas
isto.
E ela veio.
Não tenho nada para preparar para nós. Eu disse, abrindo os
armários da cozinha.
Qualquer coisa está bom. Ela respondeu, sentada no sofá da
sala. Só não queria ficar só. Esta é uma época muito triste, mas é muito pior
quando não temos mais ninguém. Onde está sua família?
No Brasil. Eu disse. Mas não quero falar sobre isto.
Preparei umas salsichas e um espaguete. Comemos em silêncio,
escutando o ruído delicado da neve na vidraça e os sons das bocas mastigando.
Por que me trouxe pra cá? Ela perguntou.
Não sei. Acho que também não queria estar só esta noite.
Vai dormir comigo? Ela perguntou, e me desarmou.
Se quiser… Respondi.
Não quero. Não como um homem e uma mulher, pelo menos, mas
como pessoas, como os seres humanos que somos. Você podia simplesmente se
deitar comigo e me abraçar bem forte e sussurrar no meu ouvido que tudo ficará
bem, que eu não sofrerei, que o fim será plácido como um pôr do sol, então eu
adormecerei e este terá sido um bom dia; um dia a menos, um dia mais próximo do
fim, menos um dentre os noventa dias que me restam. Faria isto por mim?
Eu a puxei pela mão até o meu quarto, sempre muito
bagunçado, com livros, meias e cuecas no chão; sem ordem nem propósito como a
vida.
Você é apenas um rapaz… Ela disse. Ainda verá e viverá
muitas coisas estranhas. Esta noite terá sido apenas uma delas.
Nós nos deitamos um do lado do outro e eu a abracei por
trás. Ela puxou a minha mão para o seio dela – o do câncer, suponho – e ficamos
assim por sabe-se lá quanto tempo.
Ela adormeceu, então me levantei e fui para a sala levemente
iluminada pelas luzes de fora que atravessavam a janela.
Ainda nevava. Não estava mais sozinho. No quarto, dormia uma
mulher cujo nem o nome eu sabia. Ela morreria em breve. Eu morrerei um dia.
Tudo vai ficar bem. Sussurrei. Tudo vai ficar bem.
Henry Alfred Bugalho é curitibano, formado em Filosofia, com ênfase em Estética. Especialista em Literatura e História. Autor dos romances “O Canto do Peregrino”, “O Cão Cego da Guardia Vieja” e “The Parallel Life of your Dog”, das novelas "O Covil dos Inocentes", "O Homem Pós-Histórico" e "Margot Adormecida", e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca” e do "Nova York, Bairro a Bairro", cidade na qual morou por 4 anos, e do "Curso de Introdução à Fotografia do Cala a Boca e Clica!". Residiu em Buenos Aires, Itália, Portugal, Espanha e Inglaterra com sua esposa Denise, o filho Phillipe e Bia, sua cachorrinha. Atualmente, levam uma vida nômade residindo em mês em cada cidade diferente na Europa.
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